sexta-feira, 25 de março de 2016

Incidências de uma sala de aula

         Foi em uma quinta-feira, véspera de feriado. Ao adentrar a sala do 6.º ano, na 3.ª aula, a professora deu o seu rotineiro boa tarde e comunicou que iria vistar o caderno dos alunos, já que havia solicitado uma tarefa para casa na aula anterior. E lá começou ela.
         Alguns diziam que haviam feito, outros que não sabiam, outros apenas que não fizeram, outros se perderam no amontoado de tarefas e disseram que não tinham feito, mas descobriam logo depois que fizeram, só não sabiam onde estava.
        Ela terminou e comunicou-os que passaria o restante da correção na lousa. Aquela era uma das turmas mais bagunceiras que havia naquela escola. Todos os professores que entravam ali naquela sala passavam mais tempo chamando a atenção dos alunos, do que dando literalmente aula. Era um tal de "ele está me enchendo o saco" ou "o professora, manda ele calar a boca" ou "olha ele, ele está pegando minhas coisas sem eu deixar" ou "posso fazer xixi", "quero ir beber água, posso?", e por ai, ia.
       Começou então a passar o conteúdo na lousa pedindo para que os alunos fizessem-no no caderno e com muito capricho, De repente, um dos alunos perguntou:
       _ Professora, é pra copiar isso daí?
       Nem deu tempo da professora virar para responder, já ouvira um colega gritar:
       _ Claro que sim, ou você acha que ela está passando isso porque é idiota e só pra gente ver!
       Não teve o que fazer, a classe inteira deu risada e a professora, de forma abafada, também soltou um sorriso como quem diz "está certinha sua colocação".
       A aula continuou, entre brincadeirinhas e conversinhas fiadas por parte dos alunos. Até que a professora os chamou a atenção dizendo que os que não terminassem a tarefa ficariam impossibilitados de descer para o intervalo, já que teriam de terminar a mesma. Foi então, que o mesmo colega do tal "idiota" disse:
      _ Professora, a senhora está muito rápida! Sua mão está parecendo o Ayrton Senna!
      _Como assim, o Ayrton Senna?- disse a professora.
      _ Assim, professora, a senhora está muito rápida Vrum vrum vrum, é...rápida, professora.
      Não houve palavras, mais uma vez, apenas risos.
     

domingo, 5 de abril de 2015

O que ando lendo

Eu sei, mas não devia
Marina Colasanti

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.

sábado, 4 de abril de 2015

O que ando lendo

A casa das ilusões perdidas

           Quando ela anunciou que estava grávida, a primeira reação dele foi de desagrado, logo seguida de franca irritação. Que coisa, disse, você não podia tomar cuidado, engravidar logo agora que estou desempregado, numa pior, você não tem cabeça mesmo, não sei o que vi em você, já deveria ter trocado de mulher havia muito tempo. Ela, naturalmente, chorou, chorou muito. Disse que ele tinha razão, que aquilo fora uma irresponsabilidade, mas mesmo assim queria ter o filho. Sempre sonhara com isso, com a maternidade — e agora que o sonho estava prestes a se realizar, não deixaria que ele se desfizesse. 
            — Por favor, suplicou. — Eu faço tudo que você quiser, eu dou um jeito de arranjar trabalho, eu sustento o nenê, mas, por favor, me deixe ser mãe. 
             Ele disse que ia pensar. Ao fim de três dias daria a resposta. E sumiu. 
         Voltou, não ao cabo de três dias, mas de três meses. Àquela altura ela já estava com uma barriga avantajada que tornava impossível o aborto; ao vê-lo, esqueceu a desconsideração, esqueceu tudo — estava certa de que ele vinha com a mensagem que tanto esperava, você pode ter o nenê, eu ajudo você a criá-lo. 
           Estava errada. Ele vinha, sim, dizer-lhe que podia dar à luz a criança; mas não para ficar com ela. Já tinha feito o negócio: trocariam o recém-nascido por uma casa. A casa que não tinham e que agora seria o lar deles, o lar onde — agora ele prometia — ficariam para sempre.
           Ela ficou desesperada. De novo caiu em prantos, de novo implorou. Ele se mostrou irredutível.            E ela, como sempre, cedeu. 
           Entregue a criança, foram visitar a casa. Era uma modesta construção num bairro popular. Mas era o lar prometido e ela ficou extasiada. Ali mesmo, contudo, fez uma declaração: 
         — Nós vamos encher esta casa de crianças. Quatro ou cinco, no mínimo. Ele não disse nada, mas ficou pensando. Quatro ou cinco casas, aquilo era um bom começo. 

(Moacyr Scliar, Folha de S.Paulo, 14.06.1999.)

O que ando lendo

Réstia de vida, de Heloísa Seixas

Folheando o jornal, lá estava. A foto da criança africana, faminta, como tantas que vemos. Tantas que nós, embrutecidos, já as olhamos sem estremecer. Mas nessa criança havia algo mais. Os olhos. Aqueles olhos -  úmidos, negros, imensos - tinham a força de uma lagoa ou de um oceano inteiro. Brilhavam espetaculares e transmitiam uma sensação não de horror ou tristeza, o que era espantoso, mas de luta feroz, quase de poder. Porque eram réstia de vida. Como se a alma daquela criança, aprisionada no corpo decrépito, ali tivesse cavado sua última trincheira.